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Mentes inquietas






Pânico, depressão, ansiedade, hiperatividade, crise conjugal ou a simples necessidade de se conhecer melhor. Tamanha agitação no mundo psíquico pode ter milhões de razões: o trânsito, a violência, a iminência do desemprego ou a fragilidade das relações na modernidade. Não importa. O resultado é o consumo exagerado de psicofármacos e a enorme rotatividade nas sessões de psicoterapia. Estudo publicado pela Organização Mundial da Saúde em 2001 apontou a existência de 450 milhões de indivíduos com problemas mentais ou neurológicos no planeta e a estimativa de que, durante a vida, uma em cada quatro pessoas desenvolverá pelo menos um distúrbio. Não é de estranhar, portanto, que mais de um milhão de brasileiros frequente o divã no Brasil, segundo cálculos de especialistas. O difícil é saber a qual divã se dirigir.

Cem anos atrás, Sigmund Freud comemorava o sucesso do livro "A interpretação dos sonhos" e promovia uma revolução ao difundir a psicanálise. Menos de 20 anos depois, surgiram as primeiras rusgas, dando origem a novas teorias psicanalíticas, como as propostas por Wilhelm Reich e Carl Jung. De lá para cá, diferentes interpretações de sua obra causaram uma proliferação de psicoterapias. Segundo levantamento do psicólogo americano Alan E. Kazdin, eram pelo menos 400 abordagens em 1986. "Hoje passam de 500", avalia o psicólogo e psicanalista Luiz Alberto Hanns, de São Paulo. Entender os princípios de cada uma e escolher a mais apropriada são tarefas árduas. Para facilitar a vida dos candidatos a uma vaga no divã, foi criada este ano a Associação Brasileira de Psicoterapia (Abrap). "A população quer saber quais procedimentos têm respaldo científico. Cabe a nós oferecer as respostas", justifica Hanns, presidente da entidade.

A criação da Abrap despertou desconfiança em setores que vêem nela uma tentativa de privilegiar terapias breves e focadas nos sintomas. Em países onde os planos de saúde já credenciam as psicoterapias, foram essas as linhas favorecidas. Na Inglaterra, pesquisadores ligados ao Serviço Nacional de Saúde publicam compêndios com títulos tão sugestivos quanto What works for whom? (O que funciona para quem?), lançado por Anthony Roth e Peter Fonagy em 1998. O catatau mostra, por exemplo, que apenas a técnica cognitivo-comportamental e a interpessoal são "claramente efetivas" contra a depressão. A psicodinâmica tem "eficácia limitada".

No entanto, o modelo epidemiológico usado nas pesquisas de eficácia não é apropriado para avaliar a psicoterapia. Normalmente, criam-se grupos de pacientes com o mesmo sintoma e, a cada um, aplica-se determinado método, comparando-se os resultados. O procedimento não leva em conta a saúde a longo prazo, a simultaneidade de sintomas e a hipótese de a remissão do problema ser circunstancial. Os adeptos de terapias breves contestam. "A primeira coisa a ser feita em clínica é solucionar o que é emergencial. Promover mudanças de personalidade é para depois", diz o psiquiatra Marcelo Feijó de Mello, que coordena um programa de terapia interpessoal (TIP) no Hospital da Universidade Federal de São Paulo. "A terapia consiste na realização de sessões em grupo nas quais a ajuda mútua é o grande trunfo", explica. Em poucas semanas, o método mudou a vida de Maria Sílvia Ferreira, 28 anos. Há três, teve o marido assassinado. "Minha filha estava com oito dias. Fiquei com medo de sair de casa. Demorei três anos para admitir que precisava de ajuda", lembra. Ela e outros seis pacientes terminarão o tratamento após 16 sessões e já comemoram. "Voltei a estudar e consigo passar nos locais que frequentava com meu marido", diz.

Outro método breve que se firma no Brasil é o EMDR (sigla inglesa para dessensibilização e reprocessamento pelo movimento ocular), criado pela psicóloga americana Francine Shapiro. "Quem passa por uma situação traumática fica perturbado quando se lembra do trauma. Um motivo é a falta de comunicação entre os dois hemisférios do cérebro, que impede o correto processamento das informações. Estímulos bilaterais ajudam a resgatar essa comunicação", explica o terapeuta carioca José Guilherme de Oliveira, que usa o EMDR há três anos. Mover o dedo de um lado para o outro e pedir para que o paciente o acompanhe com o olhar é a técnica mais comum. Intervalos são feitos para que o paciente conte o que pensou. "Ele passa a atribuir novos significados aos fatos", diz Oliveira. "Ao mexer os olhos, via imagens da minha mãe no hospital", lembra a psicóloga Marisa Gonçalves, 43 anos. Em novembro de 2001, ela perdeu a mãe atropelada e, três meses depois, o pai, vítima de infarto. "Hoje lido melhor com as lembranças", conta.

O crescimento das terapias breves, porém, não decretou a falência de práticas como a psicanálise e o psicodrama. Ao imediatismo pós-moderno, estas abordagens respondem com constante atualização. "Os psicanalistas não podem se restringir à interpretação do inconsciente. Sabe-se que nem tudo pode ser explicado pelos traumas da infância", diz José Thomé, da Associação Brasileira de Psiquiatria. "Também não se pode santificar as terapias que não levam em conta as estruturas de pensamento", acredita. A despeito das piadas que ridicularizam sua longa duração - quem recebeu alta em psicanálise? -, o método criado por Freud permanece. "Existe alta, mas quem diz a hora de parar é o analisando. O profissional não elimina os sintomas, mas oferece instrumentos para que o cliente o faça", explica a psicóloga argentina Ana Maria Sigal, do Instituto Sedes Sapientiae (SP).

E quem falou que é preciso receber alta para gozar os benefícios do divã? "Fiz cinco anos de psicanálise e 17 de análise junguiana. Estou parada há um mês, mas volto em breve", conta a arquiteta Sílvia Basile, 52 anos. Após perder o marido aos 34 - com um filho de nove anos e outro de um - e, em 2002, a filha de nove que tivera no segundo casamento, Sílvia reconhece que as sessões foram seu grande apoio. "É preciso coragem para encarar a gente mesma de frente. E é importante confiar no tratamento", diz. A mesma recomendação faz o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Marco Antonio Brasil. "Pacientes que confiam no tratamento têm maior chance de recuperação."

Nas políticas públicas, ganha força a tentativa de se integrarem abordagens, conforme atesta Nelson Carrozzo, psiquiatra, psicanalista e diretor do Instituto A Casa, que oferece hospital-dia e moradia assistida a doentes mentais em São Paulo. "Aproveitamos a base teórica da psicanálise, mas diversas técnicas também se mostram eficazes", diz. Conhecer o meio em que cada pessoa vive é fundamental ao terapeuta, na opinião do psicólogo argentino Antonio Lancetti, responsável por introduzir equipes volantes de saúde mental nos atendimentos do programa de Saúde da Família de São Paulo. "É preciso chegar aos locais onde as patologias apresentam risco maior e onde a psiquiatria tradicional não atua. Alguém que espancou o pai precisa ser atendido antes do menino que faz pipi na cama", compara. "Cabe ao profissional descobrir o método mais adequado para ele. Indivíduos violentos, por exemplo, evoluem bem com o uso da arte", garante. Em outras palavras, é preciso personalizar o atendimento.

Para assumir o controle da vida, vale até trocar o psicoterapeuta por um filósofo, tendência que começou nos anos 80 com a "filosofia prática", instituída pelo alemão Gerd Achenbach. Nos EUA, ganhou força após a publicação de Mais Platão, Menos Prozac, best seller de Lou Marinoff que difundiu as bases do "aconselhamento filosófico". No Brasil, prática semelhante foi instituída há dez anos pelo gaúcho Lúcio Packter, fundador do Instituto Packter de Filosofia Clínica. "Achenbach dizia que, se psicólogos e psiquiatras se aproveitam da filosofia na psicoterapia, por que o filósofo não o faz?", diz Mônica Aiub, presidente da Associação Paulista de Filosofia Clínica. "A filosofia clínica não se fecha em um método. Quando não me sentia à vontade para falar no consultório, conversávamos na praia", lembra a professora Ana Paula Rodrigues, 28 anos, de Santos (SP). Ela buscou a filosofia após tentar, sem sucesso, fazer terapia com uma psicóloga. "Aprendi a analisar meus erros e ter calma para tomar decisões", diz. Ao que parece, todos os caminhos levam ao divã, qualquer que seja ele.

Fonte: Revista Isto É
22/11/04

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