O que deveria ser a primeira audiência pública para debater as implicações e mudanças na legislação punitiva do aborto se tornou em um ringue para discursos emocionados da platéia, de deputados e dos palestrantes convidados.
Durante mais de 10 horas, as discussões se limitaram a tratar de pontos de vista divergentes em relação a questões como oposição entre vida e morte, e defesa de opiniões a favor e contra à medida. Os debates ocorreram na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, que discute o projeto que descriminaliza o aborto.
Em alguns momentos, integrantes da platéia insultaram os especialistas que apresentaram palestras contra e a favor do aborto. Por pouco não houve agressões físicas. Um missionário chegou a tirar as vestes religiosas para defender, no braço, sua posição contrária à interrupção da gravidez. Antes que agredisse alguém, foi contido pelos colegas.
Além de insultos, a platéia também vaiou ao final da palestra do diretor do Instituto de Medicina Fetal de São Paulo, Thomaz Rafael Gollop, que tratou sobre as conseqüências do aborto na saúde pública. "A ciência sem escrúpulos é um atentado à vida", gritou o seminarista Daniel Faffani, 20 anos. Ele foi à audiência acompanhado de outros nove missionários da Ordem dos Religiosos Mercedários para fazer coro aos manifestantes da Frente Pela Vida e Contra o Aborto.
"Saúde pública é diferente de fé e crime", respondeu o médico. Gollop foi chamado de nazista por outro ativista religioso ao falar sobre a situação das clínicas universitárias brasileiras que hoje dependem de autorização judicial para fazer procedimentos de aborto em casos de anomalia fetal grave incompatível com a vida. Gollop pediu respeito aos presentes. "O judiciário divide o que é ou não compatível com a vida. Você pode ter doenças gravíssimas que não têm tratamento." O presidente da comissão, deputado Benedito Dias (PP-AP) ameaçou retirar a platéia do plenário, diante dos insultos. A maioria dos parlamentares presentes à audiência pública não fazem parte da comissão e são contrários ao aborto.
O objetivo da audiência era discutir o substitutivo da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) que incorporou as propostas apresentadas por uma comissão tripartite, coordenada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e criada para estudar o assunto. O aborto deixaria de ser crime quando praticado em até 12 semanas de gestação; até 20 semanas em caso de gravidez resultante de estupro; e diante o risco de saúde para a mãe ou má formação do feto.
Os contrários ao projeto se ampararam no "direito à vida" previsto no artigo 5º da Constituição Federal. Presente a audiência como voz contrária ao aborto, o sub-procurador Geral da República Cláudio Fonteles argumentou que é inconstitucional o relatório da deputada Jandira Feghali sobre o projeto de lei. Segundo Fonteles, o direito constitucional se ocupa da vida de forma fundamental. "O direito à vida é inviolável", afirmou.
O mesmo argumento foi defendido pelo jurista Ives Gandra Martins que sugeriu a realização de um plebiscito sobre o tema. Durante a apresentação, o jurista distribuiu aos parlamentares bonecos em miniatura para representar o que seria "matar" um feto de 12 semanas.
Fonte: Correio Braziliense
23/11/2005