Um documentário com cenas de animais com queimaduras, cortes, olhos costurados e membros quebrados deve ampliar esse debate. Chamado "Não matarás -Os animais e os homens nos bastidores da ciência", o filme foi produzido pelo Instituto Nina Rosa -entidade que luta pela valorização da vida animal.
O documentário, lançado sábado no Memorial da América Latina durante congresso sobre educação humanitária, mostra ratos, coelhos, macacos e cachorros sendo alvos de estudos de laboratórios. Há testes em que produtos são colocados nos olhos de coelhos albinos ou em sua pele (com o pêlo raspado). Alguns animais têm seu sangue usado em experimentos e, outros, são expostos a inseticidas e a perfumes.
As imagens foram todas feitas no exterior. Segundo a ativista Nina Rosa, 62, empresas e universidades brasileiras que utilizam animais não permitiram a entrada da equipe. Além das imagens, há depoimentos de pesquisadores, filósofos, biólogos, médicos, alunos e professores de ciências médicas.
Estima-se, diz ela, que cem milhões de animais morram por ano no mundo em razão dos testes. "Na Europa, a cada três segundos morre um em laboratório."
Segundo ambientalistas, a Inglaterra não usa animais vivos para a formação de médicos desde 1886. Nos Estados Unidos, universidades como Harvard e Yale aboliram a utilização de bichos.
"Não gostamos de sacrificar animais. Mas também seria muito antiético permitir que pessoas não adestradas ou sem preparo cuidassem de humanos", diz Roger Chamas, 41, professor da Faculdade de Medicina da USP.
Segundo ele, os animais precisam ser usados, por exemplo, no treinamento para cirurgias. "Pode-se fazer em modelos de pano ou plástico na fase inicial. Mas o adestramento mais adequado acontece com o uso de cães e porcos, que se aproximam mais da anatomia humana."
A professora Júlia Matera, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, conta no documentário que não usa mais animais vivos em aula. Eram necessários entre 260 e 300 cães ou coelhos por ano. Agora, ela utiliza cerca de 50 cadáveres de bichos.
Os animais mortos, que recebem uma solução para ficarem preservados, podem sofrer, inclusive, mais intervenções dos estudantes do que os animais vivos.
"Antes, ao final do estudo era preciso sacrificar os bichos e isso estressava os alunos. Agora, essa sensação de desconforto não existe mais", afirma Matera.
Segundo o Cobea (Colégio Brasileiro de Experimentação Animal), nos Estados Unidos a experimentação animal contribuiu para um aumento na expectativa de vida de aproximadamente 25 anos desde 1900. "Doenças como a raiva, varicela, artrite reumática tiveram tratamentos determinados em animais", diz o colégio.
Alternativas
O documentário sugere alternativas ao uso de animais no ensino. Apresentações de vivissecção (operação feita em animais vivos para estudo de fenômenos fisiológicos) em vídeo e CD-Roms, com modelos em 3D para fazer exercícios, são algumas possibilidades.
Para Nina, o aluno que aprende com a morte de animais fica insensibilizado. "Ele passa a banalizar a morte." E estudantes que não gostam de sacrificar animais dizem que são perseguidos por professores no documentário.
Já na opinião do estudante de veterinária da USP Téo Figueiredo, a aula dessa maneira fica gravada na memória. Ele cita como exemplo a experiência que teve com rato que ingeriu estricnina e, depois, teve crise de convulsão.
Cura para doenças depende disso, diz pesquisador
Vacinas, novos medicamentos e tratamentos para doenças como o câncer ainda dependem de testes em animais, afirmam pesquisadores da Fiocruz e de universidades paulistas.
Ana Maria Guaraldo, presidente da comissão de ética na experimentação animal da Unicamp, diz que a utilização de animais na pesquisa biomédica e veterinária deve ser tratada como uma contribuição à saúde humana.
"No ensino, a maior parte das aulas pode ser substituída. Porém, na pesquisa científica, o uso de animais é imprescindível." Segundo ela, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) preconiza a utilização de pelo menos três espécies animais, uma das quais não roedora, em testes de novas drogas.
Segundo o veterinário Carlos Alberto Müller, diretor do centro de experimentação animal da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), nenhum pesquisador trabalha "com prazer" com animal. Mas ele diz que a prática ainda é necessária.
"Se pudesse acabar seria ótimo. Mas não pode. Algo fundamental para a sociedade como o estudo de câncer não se consegue fazer sem o animal."
Ele diz, porém, que os pesquisadores da Fiocruz buscam sempre reduzir o uso de animais e substitui-los quando possível -uma saída é fazer testes em cultura de células.
Os pesquisadores ressaltam, entretanto, que se deve ter bom senso e ética ao usar os animais. "Os bichos não podem ter sofrimento. Deve-se usar anestésico, dar comida de primeira. E os animais de algumas espécies não podem ficar sozinhos porque ficam estressados", diz Ingrid Taricano, chefe do laboratório de pesquisas toxicológicas da Unisa (Universidade de Santo Amaro).
Cosméticos
Empresas de cosméticos que atuam no Brasil empregaram mais tecnologia na produção para poder abolir o teste em animais. Segundo Clélia Angelon, sua empresa, a Surya, já obteve o certificado da Vega Action -instituição internacional que atesta os produtos que não têm ingredientes de origem animal e não são testados em animais.
Desde 2000, o Boticário também não realiza mais esse tipo de teste. "Desenvolvemos estudos pré-clínicos, testes in vitro usando a cultura de células e tecidos. Eles nos dão segurança suficiente para, depois, fazermos estudos com pessoas", diz o diretor de pesquisa e inovação Israel Feferman, 48.
A Natura desde 2003 não usa animais para testes de produtos prontos. Entretanto, realizou em 2005 testes de novos ingredientes com 96 animais. "A empresa decidiu que não fará mais testes nos novos ativos e está investindo pesado em alternativas. Neste ano, nenhum foi feito", diz Daniel Gonzaga, diretor de pesquisa da Natura.
Fonte: Folha de São Paulo
08/05/2006